Parece regra geral: as cinematografias, seja de onde forem, estão em transformação. As novas tecnologias (discurso já tanto revisitado) são uma espécie de motor para essas mudanças. E com o barateamento do fazer cinema, há uma crescente e, ao que tudo indica, irreversível democratização do filmar. Fazer cinema hoje pode custar muito pouco. Em paralelo há uma explosão de festivais; e uma multiplicação de outras janelas (convencionais ou não) que tem tentado levar ao público essa profusão de imagens em movimento. Mas sem ingenuidades, há barreiras gigantes. Há a inércia de uma indústria viciada em fórmulas; e há um público médio ignorante a toda essa transformação, restrita a eventos específicos, cineclubes etc.

Por isso, para muitos, filmar tem sido um ato político. Ou de guerra. O cinema nordestino, em especial filmes oriundos de Pernambuco e do Ceará (vide Estrada para Ythaca), já há muito carregam essa característica em seus genes. Cezar Migliorin, pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense, tem um ensaio longo e essencial sobre essa questão, é o texto Por um cinema pós industrial.
Esse novo cinema, que desponta em diversas partes do país, com destaque também em Minas Gerais, tem algumas regras. É um cinema barato, focado sobretudo na transformação da linguagem e, talvez, o mais importante: é um cinema colaborativo. A colaboração entre autores se mostra absolutamente necessária para fugir dos esquemas de produção que na tradição do audiovisual sempre alcançam os milhares de reais (em caso de longas-metragens, os milhões de reais).
Esses três parágrafos iniciais me servem de introdução para falar de uma sessão que aconteceu no último dia 14 de abril, na Cinemateca de Curitiba. Foram exibidos seis curtas-metragens paranaenses, todos selecionados para a 14ª Mostra de Tiradentes, que aconteceu entre os dias 21 e 29 de janeiro de 2011, na cidade de Tiradentes. A Mostra é tradicionalmente voltada à pesquisa de linguagem, como não me deixa mentir o grande vencedor deste ano, o filme mineiro Os Residentes, dirigido por Tiago Mata Machado. Nessa edição da mostra, também foi premiado o curta-metragem Vó Maria, de Tomás von der Osten. O filme é um dos seis integrantes da sessão curitibana aqui em questão.
Ato político
A exibição do dia 14 de abril foi um ato político travestido de sessão cinematográfica. Em uma sala de cinema lotada, exibiram-se os filmes Meu Medo, de Murilo Hauser; Deus, de João Krefer; Mesera, de Pedro Merege; Bolpebra, de Guilherme Marinho, João Castelo Branco e Rafael Urban; Haruo Ohara, de Rodrigo Grota; além do já citado Vó Maria.
O caráter político da sessão se deu na intenção de transformar aquela exibição numa espécie de pedra fundamental, para tentar alertar mídia e público que algo de importante está acontecendo no cinema de Curitiba e adjacências.
E algo está acontecendo.
A exemplo do que vem se delineando em diversos outros estados do país, o cinema paranaense começa a mostrar uma nova cara. É a ponta do iceberg, de um trabalho que vem se estendo há anos e que teve em Estômago (dirigido por Marco Jorge) o seu estrelato. Estômago, entretanto, provavelmente não está coadunado com esse modelo colaborativo que marca os curtas da sessão Tiradentes/Paraná.

Os filmes
Mas o aspecto colaborativo que caracteriza a maior parte dos seis curtas não é o único viés agregador desses filmes. Nem o fato de serem todos produzidos num único estado da federação. Acredito que dois vértices os definem melhor:
1) Uma necessidade de por em cheque modelos tradicionais de narrativas (sejam elas ficcionais ou não);
2) um sentimento de falta de pertencimento, como bem apontou Pedro Maciel Guimarães, curador da Mostra de Tiradentes, que esteve presente mediando o debate posterior à exibição dos curtas em Curitiba.
Essa falta de pertencimento talvez esteja mais claramente explicitada no curta Vó Maria, que a partir de imagens fragmentadas de um antigo retrato, e de depoimentos representativos de três gerações diferentes (vó, mãe e filha), tenta elucidar quem é aquela personagem, antepassado do próprio Tomás, diretor do curta. O filme, um documentário, é uma tentativa de aproximação de um mundo que já não nos pertence, ou que a cada dia menos nos pertence, a cada dia está mais no limbo do esquecimento.
Bolpebra, também um filme documental, se aproxima de seu personagem – uma espécie de cicerone da tríplice fronteira – para nos colocar em uma inconstância (de gênero, de geografia). Bolpebra fica na fronteira entre Bolívia, Peru e Brasil. Tem pouquíssimos habitantes e uma praça grandiosa para os padrões do lugar. Uma espécie de praça fantasma localizada em meio à floresta. Uma construção/ode ao homem imersa em ambiente selvagem.
Deus, curta de um único plano, também olha para a natureza na tentativa de alcançar seu tema. São cerca de cinco minutos enquadrando um amanhecer (ou entardecer) acompanhado por uma orquestração tão exuberante quanto a imagem. É interessante notar nesse curta que há, além das suas colocações metafísicas, uma proposta frontal por um cinema fortemente questionador.
Mesera é herdeiro de uma tradição que está em desuso no cinema brasileiro. Dirigido por Pedro Merege – o diretor mais experiente do grupo (um velha guarda, como o definem) -, o filme, rodado em super 8, bebe no escracho do cinema marginal. É um filme também de fronteira, tanto geográfica (seus personagens perambulam entre países; falam um portunhol canhestro) quanto de gênero (o curta está num limiar entre faroeste italiano, comédia e filme de autor).
Outro que busca uma experiência de gênero cinematográfico é o curta Meu Medo. O filme é uma animação que margeia o cinema infantil e o suspense sobrenatural. Busca o medo do espectador numa apropriação quase existencial. A criança, personagem protagonista, é uma metáfora para o ser humano e suas prisões cotidianas.

Haruo Ohara, que se distingue dos demais pela sua precisão matemática, se aproxima desse despertencimento através dos olhos de seu próprio personagem, um fotógrafo da Londrina do início do século XX. Um outro ponto crucial é o próprio desprendimento quanto ao gênero documental, já que é este também um filme fronteiriço. Que margeia: ficção/documentário, fato/invenção, aridez/poesia. Haruo Ohara é o último filme da trilogia do esquecimento, precedido pelos curtas Satori Uso e Booker Pittman. O primeiro é dedicado à literatura, o segundo à música e o último à fotografia.
Vastidão
Não tenho a pretensão de tentar encerrar o assunto com este artigo. Ao contrário, isto aqui é um pequeno índice de algo bem maior. Os filmes apresentados na sessão Tiradentes/Paraná são apenas o movimento mais recente de uma escalada gradual e lenta. Há diversos outros nomes que compõe esse cinema e que podem fazê-lo mais significativo. Com o advento do curso de cinema, que tem formado agora suas primeiras turmas, essa profusão de nomes deve aumentar e se qualificar.
A verdade é que quando esse tipo de discussão aqui posto deixar de existir, perceberemos que um passo ainda mais importante foi dado.
15 Abril, 2011| 8:03 pm
Amigo, que bom ter esse panorama do PR.
18 Abril, 2011| 1:33 pm
Assinatura..