Há 30 anos Harvey Milk era assassinado. Militante pelo movimento gay em São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos, sua morte acabou por tomar o símbolo que só os mártires podem projetar. Estranhamente, no entanto, sua morte tem razões menos claras do que este parágrafo pode fazer supor.

Milk incomodou a direita conservadora norte-americana pregando direitos civis; fazendo milhares de pessoas marcharem em prol de uma causa que para seus opositores era a destituição da família, base da sociedade; para eles, Milk pregava pela imoralidade. Mesmo assim, as balas que tiraram a vida do ativista, convertido em uma espécie de vereador (nos moldes da democracia estadunidense) veio de um confronto de poder político e não, verdadeiramente, de uma questão ideológica.
No filme de Gus Van Sant, a violência que assassina Harvey Milk é mais primordial. E quando ela surge, nos lembra que o mundo nunca esteve polarizado, que essa história de mocinhos e bandidos é coisa exclusiva de uma certa dramaturgia que o próprio Van Sant faz questão de renegar (vide Elefante, uma obra emblemática nesse sentido).
Milk conta a trajetória deste homem, um homossexual que galgou posição política na época em que São Francisco via gays sendo espancados por policiais; numa época em que se discutia a demissão de professores que fossem homossexuais. Milk se tornou o primeiro vereador norte-americano assumidamente gay.
Em um decurso de oito anos, Milk passa de empresário (dono de uma pequena loja de fotografia) a líder de uma causa. Nesses anos, Milk vira o protagonista de uma mudança que hoje faz muita gente ter a liberdade de assumir suas posições sexuais sem o medo de ser morto. E antes que bradem com números e recortes de jornais, sim, eu sei que ainda há um preconceito gigantesco, e que mesmo em grandes cidades (no Brasil ou nos Estados Unidos) há assassinatos e abusos físicos, há humilhações e piadas de humor duvidoso. Sei disso tudo, mas os avanços são inegáveis.

Na trajetória que leva Harvey Milk ao poder, ele aprende o que há de mais elementar na política, a negociação. Desde os primórdios do movimento (quando não passava de um gueto em São Francisco restrito a um quarteirão), Milk se viu obrigado a confluir seus interesses (e os do movimento) com os outros muitos que se chocam durante a torrente que são esses oito anos. E como um porta voz do próprio Gus Van Sant, Milk em muitos momentos insiste em não polarizar as discussões entre héteros e homossexuais. Porque ele entende que a vitória de seus direitos está em entender uma sociedade como unidade (com todas as suas variantes) e não em fazer suas posições em detrimento do outro.
Assim, o militante quer ir mais longe do que apenas sua posição de gay assumido e líder de uma causa possa sugerir. Harvey sabe que seu papel não é apenas o de ser uma voz contra o conservadorismo, mas também o de formador de opinião – ou ainda mais importante – o de transformador de opiniões. Ciente disso, em uma das primeiras posições assumidamente políticas do personagem, ele renega o rabo de cavalo e a barba (que o deixam com cara de hippie) e passa a trajar-se de terno.
Encarando Milk como um filme também político, fica-se claro que as opções estéticas empregadas por Gus Van Sant vão na mesma direção do seu personagem. Gus Van Sant é reconhecido como um realizador radical, que leva suas narrativas a patamares muito abstratos. Neste Milk, porém, não. As bases do seu roteiro são absolutamente convencionais. Nesse filme, Van Sant veste o terno de Harvey Milk, mas nem por isso perde a mão, nem por isso esquece que seu veículo é o cinema. Ou seja, em nenhum momento o filme torna-se um mero panfleto.
Na verdade, em muitos momentos Milk surge quase como um documentário, tamanho é o esforço de trazer credibilidade à obra: seja nas imagens de época, muitas vezes falsas; seja na constante reiteração das datas, sempre precisas, e sempre nos lembrando que aquela história tem um prazo final e trágico.
Além disso, se nos últimos filmes Gus Van Sant preferiu rostos mais desconhecidos para trabalhar, neste ele escala para protagonista ninguém menos do que Sean Penn (Oscar de melhor ator por Milk), conferindo uma enorme credibilidade ao personagem. Em artigo publicado na Revista Piauí (edição de fevereiro), o documentarista João Moreira Salles faz outra ressalva: “Escolher Sean Penn não é apenas escolher um grande ator. É também uma decisão conservadora, pois se trata, uma vez mais, de um homem com sólidas credenciais de macho no papel de um homossexual. É o preço da decisão de contar a história (…) dentro do sistema de Hollywood”. É, de novo, o tal do terno que Harvey Milk passa a usar. Salles lembra que o público hétero não se sentiria à vontade se o ator em questão pudesse sentir prazer na vida real durante as cenas de sexo. E elas, por sinal, são pontuais e até certo ponto pudicas.
Mas retornando, a questão mais importante de Milk não é simplesmente a trajetória desse ativista e as merecidas conquistas que ele propagou no campo dos direitos civis. A questão que Gus Van Sant coloca é que a violência humana transcende nossas expectativas. Harvey sabia que tinha grandes chances de ser assassinado. No entanto, a morte lhe chegou pelas mãos de um colega (porém rival político) depois que perdeu seu cargo e viu em Harvey um dos culpados pelo fim do seu mandato. Tratava-se, sim, de um político conservador, mas que, pelo menos aos olhos do filme, não teria motivos ideológicos para cometer um crime.
Gus Van Sant, desse modo, pontua sua perplexidade frente à natureza humana e rememorando Elefante, filme no qual (des)investiga o massacre de 1999 na escola Colubine, segue o assassino com uma câmera suave, prenúncio da tragédia.
Se Harvey já havia se pronunciado contra a polarização entre homo e heterossexuais, falando que seu mandato seria voltado para todos, Gus Van Sant reforça essa afirmação nos mostrando que a natureza humana é sempre muito mais complexa.
20 Julho, 2009| 3:18 am
Muito contundente e justa sua resenha, Aristeu.
Milk é, inegavelmente, uma biografia necessária. Seja pela trajetória e luta de Harvey Milk e todo o movimento por uma igualdade e respeito pela orientação sexual individual, seja pela estrondosa atuação de Sean Penn.
As palavras do roteirista vencedor Lance Black ecoam a voz daqueles que idealizam uma sociedade realmente igualitária civilmente, sem categorizações toscas que apenas reafirmam aquele camuflado preconceito e – portanto, justificam a importância desse tipo de produção.
Discutir Milk significa afirmar a relevância dessa discussão.
Parabéns!