“Uma noite, no inverno de 1965, eu levei a minha moto – e um passageiro – pro lado mais alto de uma estrada escorregadia por causa da chuva ao norte de Oakland. Eu entrei numa curva obviamente perigosa a uns 110 Km/h, esticando a minha segunda marcha. A pista molhada impediu que eu inclinasse o suficiente para compensar a tremenda inércia e, em algum lugar no meio da curva, percebi que a roda traseira não estava mais seguindo a dianteira. A moto estava indo para o lado na direção de uma rampa de trilho de uma ferrovia e não havia nada que pudesse fazer a não ser esperar. Por um instante, a sensação era de muita paz… E depois foi como ser atirado para fora da estrada por uma bazuca, mas sem nenhum barulho.”
O trecho acima, do livro Hell’s Angels, em que o jornalista e escritor Hunter S. Thompson narra como se esbagaçou em sua moto – chegando no pronto-socorro “com o couro cabeludo caindo nos olhos e uma camisa encharcada de sangue grudada no peito” – pode ser considerado como uma síntese de duas modalidades de jornalismo surgidas quase que no mesmo período e profundamente inspiradas pelo movimento de contra-cultura das décadas de 50 e 60: o Novo Jornalismo e o Gonzo Jornalismo. Mas Hell’s Angels (publicado por aqui em 2004, pela Conrad), por ser uma espécie de obra de transição de Thompson, ajuda a demonstrar mais do que isso: explica as diferenças entre o Novo Jornalismo e o Gonzo e explica porque foi ele, Thompson, – e não Capote, Talese ou Mailer, por exemplo – quem levou a contracultura às últimas conseqüências em sua obra jornalístico-literária.
O livro foi publicado originalmente em 1967 nos Estados Unidos e trata, claro, dos grupos ou gangues de Hell’s Angels, que na década de 60 foram alvo de grande estardalhaço por parte da imprensa americana e povoaram o imaginário da população do país como perigosos malfeitores. E, na verdade, não eram mesmo sujeitos lá muito amigáveis. Thompson, no entanto, desvenda os exageros e mitos criados pela imprensa da época a respeito deles e explica como surgiram e o que eram essas gangues de motoqueiros formadas por sujeitos que estavam à margem do Sonho Americano, tinham as motocicletas como elemento simbólico constitutivo de sua identidade de grupo e eram conhecidos pelo estilo violento e errante. Mas o grande lance é que o livro não é um amontoado de relatos de segunda mão – como tão freqüentemente costuma continuar a ser o jornalismo – nem uma tese de antropologia, apesar de ser tão profundo quanto uma e com certeza muito mais vibrante. Hell’s Angels é um livro feito a partir de uma técnica chamada “imersão na realidade” ou “captação participativa”.
Isso quer dizer simplesmente que, para escrever sobre os caras, Thompson praticamente virou um deles: passou a conviver com eles diariamente durante cerca de um ano, a rodar em cima de sua própria motocicleta e ver pessoalmente como eles viviam e o que faziam. Até aí se trata da mesma técnica fundamental do Novo Jornalismo, que incluía, ainda, outros procedimentos constitutivos: 1.) a construção cena a cena, ou seja, contar a história passando de cena para cena, através do texto narrativo; 2.) o registro de diálogos completos entre os personagens reais; 3.) o ponto de vista da terceira pessoa, o que proporciona inclusive o registro de reações emocionais e pensamentos dos personagens; 4.) e o registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer e outros muitos detalhes simbólicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena. Não é preciso dizer que tudo isso só é possível graças à tal imersão na realidade e que a fonte natural dessa nova forma de fazer jornalismo era o velho e bom Realismo.
Mas a novidade que isso tudo trazia era que os novos jornalistas estavam dizendo: “vejam, isso é jornalismo, mas também é literatura”. Porque os textos tinham qualidade literária e se utilizavam das técnicas da narrativa literária. Como se não bastasse essa afronta aos limites comportados e bem assentados que separavam os dois campos – Jornalismo e Literatura – eles, e também Hunter Thompson, se atreveram a registrar os movimentos sociais e personagens de um mundo em ebulição política e comportamental, coisa que a literatura do período, em grande medida imersa em questões formalistas, não vinha fazendo. E tudo isso era feito sem os filtros da grande imprensa, sem o crivo opinativo das fontes oficiais sobre cada um dos fatos e fenômenos. Assim como faziam todos os movimentos influenciados pela contra-cultura, também aqui o discurso oficial, o discurso do status quo – quer fosse de esquerda ou de direita – era profundamente questionado, através de narrativas que proporcionavam compreensões muito mais amplas do real.
A transcrição no início deste artigo demonstra, antes de tudo, até que ponto Thompson estava disposto a ir em sua imersão na realidade. A título de ilustração, basta dizer que, em outro trecho da obra, ele é surrado por um grupo de Hell’s Angels. Mas o cara ainda extrapolaria ainda mais na “imersão” e é aí que se encontra a pedra de toque que iria distingui-lo dos novos jornalistas. Thompson terminaria por se tornar o protagonista de suas histórias, invertendo completamente a lógica jornalística. Isso fez com que inclusive outras características – presentes em Hell’s Angels – se exacerbassem depois, em livros como Medo e Delírio em Las Vegas (1972). Dentre elas está 1.) a utilização do narrador em primeira pessoa, 2.) o consumo de drogas e a descrição dos acontecimentos a partir deste ponto de vista, 3.) o uso do sarcasmo e/ou vulgaridade como forma de humor, 4.) a dificuldade de discernir ficção de realidade e 4.) a tendência de se distanciar do assunto principal ou do assunto por onde o texto começou, ou seja, o mote jornalístico inicial.
Thompson teve colhões suficientes para, primeiro, renegar o jornalismo convencional – e simultaneamente afrontar os literatos. Mas isso já havia sido feito pelos novos jornalistas. Ele, então, resolveu ir além do que se faziam no Novo Jornalismo e foi fundo na subjetividade, a ponto de mandar a regra número um do jornalismo, a referencialidade, pras cucuias. Sua obra foi parar num limbo entre jornalismo e literatura e literatura confessional, confrontando, ao mesmo tempo, as regras de todos eles e demonstrando quão frágeis podem ser vários de seus parâmetros. Assim como queriam vários dos movimentos contraculturais, ele consegue questionar discursos sociais (nos quais se incluem discursos profissionais também) cristalizados e desfazer determinados limites ou linhas divisórias pré-estabelecidas pela tradição. É claro que tudo isso teve seu preço, que pode ter a ver com a sua morte por suicídio, com um tiro na cabeça, em fevereiro de 2005, há três anos.

Yuri Borges é jornalista. Texto publicado originalmente no e-zine Disruptores.